Há certo encantamento quando nos deparamos com ideias boas, muito boas, ou excelentes. Mais ainda quando formuladas pela própria pessoa que as identifica ou as formula.
Nos anos 1990 o Brasil pôs fim aos trens, desativou milhares de linhas e ramais do transporte ferroviário de passageiros e manteve apenas algumas linhas tronco destinadas ao transporte de cargas, denominadas heavy Haul (transporte pesado de mercadorias, em tradução leiga e aproximada).
Em 1996 o Brasil possuía aproximadamente 35 mil quilômetros de trilhos, depois da desativação o País opera hoje aproximadamente um terço disso sendo 20% eletrificadas as demais operadas por tração eletrodiesel (locomotivas que possuem um gerador que produz energia elétrica para movimentar os seus motores de tração).
Na desativação das ferrovias foram abandonadas as estações destinadas ao embarque de pessoas e mercadorias. A quantidade é imprecisa, mas podemos estimar que havia aproximadamente 4 mil estações ferroviárias Brasil afora.
A operação do modal ferroviário supõe a existência de estações compostas de plataforma, que nivela a altura dos vagões permitindo acesso às suas dependências para passageiros e cargas; armazém, para concentrar cargas a serem embarcadas e aquelas descarregadas dos trens para posterior retirada; escritórios, destinados aos controles administrativos, financeiros e operacionais dos transportes.
A localização das estações sempre se constituiu em ponto de referência nas cidades e localidades onde existiam os trens. A desativação do transporte de passageiros e a racionalização do transporte de mercadorias (abandonando-se as cargas gerais, o transporte de correspondência e encomendas dos dos Correios) ocorreu a concentração nas cargas pesadas heavy Haul (minérios, grãos e combustíveis) provocando mudança urbanística de milhares de cidades e localidades até então utilizadas como elo de integração da vida dessas localidades/cidades e pessoas.
Visitas, fotos e informações disponíveis sobre esse patrimônio abandonado dão conta de que ocorreu deterioração dos imóveis das antigas estações, desvalorização das propriedades do entorno e completo abandono ao que restou dos trens, trilhos e serviços de transportes.
A crise do transporte ferroviário aconteceu em diversos outros países devido à competição com o transporte rodoviário -cargas e passageiros- muito mais flexível e requerendo baixo investimento para a implantação de estradas e dos pontos de apoio para suas operações.
A crise se abateu sobre muito países, porém a maneira do enfrentamento a esses problemas foi diferente em cada situação. As ferrovias americanas (mais de 50 empresas existentes) superaram as adversidades e desenvolveram novas formas de operação privilegiando o aproveitamento de linhas e ramais secundários através das Short Lines (linhas curtas ou secundárias) que passaram a atuar como abastecedoras de linhas principais ou obtendo viabilidade operacional pelos transportes especializados e rentáveis e mesclando capitais públicos e privados.
No Brasil o abandono significou o “descarte” ou alienação dos bens públicos, do material rodante que se tornou sucata e, também, por apagar da memória das pessoas o transporte de qualidade para viagens longas (vencer, por exemplo, distâncias em viagens de mais de 600 quilômetros ou de mais de 12 horas de duração).
O patrimônio imobiliário abandonado se transformou, sob autorização do Governo Federal -proprietário desse patrimônio-, em centros de artesanatos ou atividades culturais como mero aproveitamento do espaço disponível.
As estações ferroviárias poderiam ter sido transformadas em “mercados” ou centros de abastecimento de produtos básicos (cereais, hortaliças, carnes e pescados) e tudo que se relaciona ao consumo obrigatório na vida das pessoas.
Há um organismo Federal que cuida dos bens remanescentes das atividades ferroviárias no País. Trata-se de um “cartório” encoberto por densa névoa de regras e procedimentos burocráticos que se mantem até que se apague completamente a herança ferroviária deixada depois de século e meio operando no País.
Em tempos de “boas ideias” (melhor ainda quando as próprias ideias) será rever esse passado deixado 150 anos pra trás e analisar o potencial das tantas vias abertas e abandonadas e repensar o trem, as hidrovias ( e o próprio transporte rodoviário) e tantas coisas desenvolvidas com os custos e financiamentos pagos pelos brasileiros e integra-los nos tempos de “baixo carbono” de “sustentabilidade” e de “economias verdes”.
Paulo Westmann