Frederico Bussinger
“Se tens que lidar com água,
consulta primeiro a experiência, depois a razão”
[Leonardo Da Vinci]
“As coisas estão no mundo,
só que eu preciso aprender…”
[Paulinho da Viola]
“A lição sabemos de cor,
só nos resta aprender”
[Beto Guedes]
Herr Blumenau (na verdade, Hermann Bruno Otto Blumenau), alemão, implantou no vale do Rio Itajaí-Açu-SC uma colônia em meados do Século XIX. Esta veio a ser hoje a conhecida, próspera e hospitaleira cidade que leva seu nome.
Consta que, ao se preparar para a viagem de imigração, lembraram-lhe que os índios xoclengues, habitantes da região escolhida, “eram muito violentos”. Aliás, o que também ouvira em viagem precursora, quatro anos antes.
Desembarcou em Itajaí com 16 outros colonos compatriotas. Subiu o rio com todo o cuidado; tomado também ao chegar naquele 2/SET/1850 à foz do Ribeirão Garcia, seu afluente, hoje centro histórico da Cidade.
Afastado dos assentamentos indígenas o local lhe pareceu seguro. Dividiu a gleba entre eles. Edificaram. Plantaram. Colheram.
Passado um tempo, como os “indígenas violentos” não deram o ar da graça, tomaram a iniciativa e resolveram fazer uma aproximação. O cacique os recebeu, em princípio desconfiado, mas sem hostilidades.
Com muito jeito, Herr começou falando das vicissitudes na Europa naqueles tempos; das razões de migração para o Brasil; do “mal jeito” de terem se fixado “nas terras de vocês”…. e tal e coisa. Espantou-se quando o cacique o interrompeu: “mas aquelas terras não são nossas!”. Meio sem jeito, ele ousou perguntar: “então de quem são?”
– “Das águas”, respondeu o cacique!
A história, daí em diante, é conhecida… e justificada com impressionante regularidade: uma primeira enchente ocorreu logo dois anos depois (29/OUT/1852); algo que não deveria ter sido surpresa para Herr que, em carta à família, em 1848, já mencionara as cheias do Itajaí-Açu.
Desde então, já foram 101 enchentes nos registros desses 172 anos (alguns deles com mais de uma): a cota recorde em 1880; a mais longa em 1911; a de 1983, mais lembrada pela extensão dos sofrimentos e danos, numa Blumenau então já fortemente industrializada. O recorde do Século XXI em 2008, enchente que destruiu berços e forçou a paralização do Porto de Itajaí por longo período; e a de 2023, que provocou a suspensão da tradicional Oktoberfest pela primeira vez em seus 39 anos.
De igual modo, os registros de Porto Alegre dão conta de 12 principais cheias em 150 anos: 1873, 1914, 1928, 1936, 1967, 1984, 2002, 2015, 2016, 2023, 2024; além da histórica de 1941 (a maior anteriormente), esta vivida por Mario Quintana que a expressou nos versos de “Reminescências”.
Dificilmente o cacique ouvira falar de Da Vinci. Mas é certo que testemunhara inúmeras enchentes na região. Seus antepassados outras centenas ou milhares. Curioso é que Herr, químico e farmacêutico com formação sofisticada, se ouvira falar de Da Vinci, não se convencera da importância de, quando se lida com águas, consultar-se primeiro a experiência.
Dito de forma mais direta: quem quer conviver com águas, tem que “negociar” com ela as condições!
Da Vinci; experiências não faltam!
Além dessa lição básica, só ao longo desses quase dois séculos de desastres registrados em várias regiões do Brasil, é possivel arrolar outras evidências, constatações e experiências que poderiam ser sistematizadas também como lições aprendidas; seguindo recomendação de Paulinho da Viola e Beto Guedes:
- Planos, projetos, obras são importantes; mas manutenção também: aliás, ela é imprescindível! P.ex: ter um sistema de proteção com 68 km de diques, projetado para cheias de até 6 metros, como o de Porto Alegre, mas que, na hora-H se rompe (ainda abaixo dos 5 m); bombas que não funcionam, inexistência de fonte emergencial de energia, ou, pasmem, constatar-se que falta vedação em algumas das 14 comportas (com contato ferro-ferro há vazamento!), é inaceitável! Não? OBS: no início desta década houve grande polêmica entre os que propunham e os contrários à derrubada de parte dessa estrutura, o “Muro da Mauá”.
- De igual forma, planos de contingência: não há espaço para improvisações quando a catástrofe já é uma realidade, quando o caos já está instalado. Aí, é o que dá para ser feito!
- Rios assoreados têm menor capacidade de vazão e transbordam de suas calhas com mais facilidade. Claro que devem ser desassoreados periodicamente. Mas, por que não agir, também, preventivamente? P.ex: manter matas ciliares; evitar ocupações de áreas lindeiras e encostas (esta, fonte maior do material que assoreia os rios); etc.
- Águas densas, com detritos, fluem com mais dificuldade. Se com pneus, colchões, moveis, geladeiras, entulhos de construção, com mais dificuldade ainda.
Ah! Especificamente sobre a catástrofe gaúcha, em curso, já há uma primeira sistematização de dados/informações, elaborada e divulgada pela UFRGS. Visa dar “suporte à decisão”. E, claro, principalmente à ação!
Enfim; os registros e evidências de Blumenau e Porto Alegre (outros também) indicam que as chuvas têm se tornado mais concentradas, o que amplia os impactos. Mas também indicam que temporais, trombas d´água, chuvas prolongadas, inundações sempre existiram. E são até previsíveis. Ué! Não fosse assim, de onde teria vindo a “experiência” do cacique?
Desafios à frente
Não dá, pois, para, professoralmente, limitar-se a responsabilizar a “mãe-natureza” ou o “aquecimento global” (fenômeno tão amplo, complexo e impessoal); mormente se como álibi para inação pontual/local.
Tampouco apenas cobrar dos poderes públicos (prefeituras, governos estaduais e federal) que, claro, têm responsabilidades; seja pela leniência (deixando que façam o que não poderia ser feito), seja por omissão (do que eles deveriam fazer), seja pelo que e como eles decidem e fazem.
A população, a comunidade, a sociedade, que são as primeiras vítimas das catástrofes, também são parte do problema (no mínimo, no tocante às suas consequências). Mas podem, também, ser parte da solução.
Em síntese: antecipação (eventos), prevenção (impactos), minimização (danos), socorro (afetados), restabelecimento (sistêmico); é estratégia que requer planejamento e gestão, muito facilitada com a participação de todas as partes envolvidas: ou seja, nós!
Aliás, consciência e espírito de solidariedade não faltam à maioria do povo brasileiro, de todas as regiões, como o demonstra essa mobilização em apoio ao RS e sua população. Emocionante!
Vale lembrar que a Holanda, com mais de 1/4 do seu território abaixo do nível do mar, onde abriga mais de 60% de sua população, e metade em áreas a menos de 1m acima dele, acumulou experiências e agiu ao longo dos séculos; particularmente a partir da grande catástrofe de 1953, para conviver com as ressacas do mar, as chuvas intensas e os degelos; por vezes simultaneamente. É inspirador saber que as mundialmente conhecidas flores holandesas, uma pujante indústria, e cerca de 70% do seu PIB são produzidos abaixo do nível do mar; não?
Mesmo as maiores e mais sofisticadas medidas preventivas, todavia, não impedem a ocorrência de catástrofes. E, também nesses casos, há exemplos inspiradores; p.ex: New Orleans (Furacão Katrina, 23/AGO/2005); Japão (Terremoto e Tsunâmi, 11/MAR/2011); e New York (Furacão Sandy, 22/OUT/2012), que se reergueram após tê-las vivido/experimentado há poucos anos atrás.
A par dos resgates e do socorro às vítimas (óbvio, a prioridade-zero), e das primeiras ações para restaurar a rotina das pessoas/famílias, e do funcionamento das cidades e da economia, a reconstrução do RS já está em pauta.
Verbas públicas, claro, são importantes; imprescindíveis. Iniciativas e empreendimentos privados, também. Mas seria frustrante, e um erro histórico, se tantas dezenas de bilhões de R$ vierem a ser usados para simplesmente se reconstruir, da mesma forma, o que havia antes dessa catástrofe gaúcha … sob pena de, indesculpavelmente, negligenciarmos os ensinos do cacique, Paulinho da Viola e, principalmente, de Da Vinci. Várias cidades, p.ex, deverão ter que mudar de localização. A catástrofe gaúcha, para além de sua dramaticidade, também nos oferece (mais) uma oportunidade (melhor, obrigação!) de transformar a ocupação dos espaços, as infraestruturas, nossas governanças … e a nós mesmos, na esperança/perspectiva de que volte a raiar um “sol de primavera”.
Amigo Bussinger, excelente e inspiradora contribuição, notadamente na fundamentação histórica, como deve ser na engenharia. Nosso país deve ter mais zelo pela técnica do que pela política.
Muito bem dito e exemplificado. Bom seria que muitos, muitos mesmo lessem .
Fred, que prazer me reencontrar com sua inteligência. Abs. Pedro Falabella Tavares de Lima
Excelente!
Excelente texto 😊
Excelente! Uma abordagem não sensacionalista mas muito didática.
Parabéns Dr. Bussinger. Foi um resumo excelente, cheio de conhecimento e proveitoso para futuras ações. Não tinha tido oportunidade de ler nada mais útil para se sair dessa situação. Precisamos abraçar a ciência e deixar de lado a nossa arrogância e prepotência.
Muito oportuno. Espero que seja devidamente considerado pelos que tem poder para mudar esta situação
Essa catástrofe está levando muita gente a pesquisar, alguns procurando entender as causas desse episódio, outros alternativas para sanar futuras enchentes e problemas semelhantes como leio nessa matéria.
Entendo que fenômenos climáticos são cíclicos e sazonais, seguindo a linha dos cientistas que estudam, acompanham o derretimento das geleiras do Polo Norte, a elevação dos oceanos etc. alardeados há +20 anos e informam, que os cenários mantêm-se estabilizados. Ouvi/li tbm, que já em 1941 e nos anos subsequentes, os climatologistas e estudiosos previram os ciclos de chuvas intensas qdo outras ocorrências graves aconteceriam. Ao longo dos anos houve diversos alertas dos climatologistas como Ronaldo Coutinho (Climaterra), da Defesa Civil etc, sobre a iminência de inundações, que acabaram ocorrendo (há farto material publicado) e o que se viu nesse tempo, ou melhor, o que não se viu foram modernização nos sistemas de contenção, investimentos pesados em infraestrutura etc. O modelo do Japão, p.ex. (entre outros apontados nessa publicação) poderia ser analisado ajustando-se a topografia e características próprias do RS e de outras regiões, que igual/te sofrem com o problema e de forma responsável com os recursos financeiros, os aplicasse em projetos preventivos de curto, médio e longo prazos para sanar ou no mínimo evitar as perdas que estão havendo.
Ok, nada de novo – é óbvio que os especialistas em desastres e gestão de risco devem ter batido nas portas “oficiais”. E? O resultado?
É só um desabafo – mantenho a esperança de que essa tragédia mantenha os maiores interessados, a sociedade civil mobilizada, leve adiante planos nesse sentido, invista e os conclua. Aliás, graças às redes sociais, emociona testemunhar o exemplo de cidadania e de responsabilidade e amor ao próximo, que tantos voluntários estão dando!!
Texto muito elucidativo, oportuno e que aponta esperanças.
Vozes de sabedoria indigena, de cientista-artista e poetas cantores resumem conhecimentos aprendidos da história de sofrimentos ancestrais.
Bussinger escreve com conhecimento de ezperiente gestor de complexidades sistêmicas e politicas como as da presente catástrofe mo RS.
Fica a lição para todos os governantes manutenção preventiva com responsabilidade e para população respeito a natureza.
Importante e cirúrgica intervenção, no ponto de resolução, afora a elaborada pesquisa, acrescida de notas de ótimo senso de arte, fazem desse texto um oásis nessas terras secas de conteúdo pelas quais vagam nossos tempos, ou, de outra forma, inundadas de ideias vazias.
Muito bem redigido, um texto de qualidade. A resposta do cacique pintou como um relâmpago.
É estarrecedor como o setor público precisa aprender com a iniciativa privada sobre prevenção de riscos. A falta de planejamento e de responsabilidade do governo do RS é, sobretudo, do Governo Federal vão entrar para a história como uma clara e impactante constatação: O Brasil não está preparado para lidar com tragédias naturais.
Querido Amigo Fred
Adorei o seu artigo . Comungo com sua linha de raciocínio.
Muito obrigado por compartilha lo comigo .
Texto maravilhoso!
Parabéns ao autor Frederico Bussinger por esta aula altamente instrutiva, inteligente e reveladora das nossas capacidades gerenciais.
O estado brasileiro faliu há muito!
Somos uma grande nau à deriva, infelizmente!
Que pena!
Que dó!
Dolor da Silva
Texto maravilhoso!
Parabéns ao autor Frederico Bussinger por esta aula altamente instrutiva, inteligente e reveladora das nossas capacidades gerenciais.
O estado brasileiro faliu há muito!
Somos uma grande nau à deriva, infelizmente!
Que pena!
Que dó!
Dolor da Silva
Artigo fantástico, irei compartilhar.
Chamem que conhece de água: os holandeses, criaram um País que possui 40% de seu território abaixo do nível do mar e criou diques e proteções para situações extremas! Construíram e inovaram e MANTÉM!!
Amigo Frederic,
Como de praxe teus artigos são informativos, analíticos e provocativos. A frase de Da Vinci cabe como luva na realidade brasileira, a qual me faz lembrar outra nesse sentido, a do saudoso Roberto Campos, que não se cansava de afirmar que “brasileiro teima em não aprender com a experiência”.
Neste momento, as prioridades estão concentradas no auxílio das pessoas atingidas pelas enchentes, cujo desafio está sendo superado pela virtude e senso de cidadania do povo brasileiro. Contudo será oportuno continuar estudando as causas dessa tragédia, mas também as alternativas de soluções para mitigar as terríveis consequências e, assim, com base nessa triste experiência debater a respeito dos arranjos que deverão se implementados nos setores publico e privado para que possam melhor controlar e administrar os rios e lagoas.
No entanto, é justo dizer que todas as tuas colocações, críticas e recomendações são procedentes e têm fundamento. Cabe dizer- lhe, restringindo-me aos rios e lagoas interiores do RS, que, embora a causa maior da tragédia gaúcha deveu-se -se a fenômenos naturais, mas é preciso levar em conta que a falta de planejamento, a ausência de manutenção das barragens, o desleixo com as margens dos rios e da mata ciliar, o excesso de burocracia e a turma do meio ambiente que apenas diz não e outros gargalos – que são problemas que vêm de longa data -, são os efeitos decorrentes de uma gestão pública inadequada e também o desinteresse da sociedade com a preservação desses patrimônios naturais, dado que a comunidade não tem nenhum controle sobre o setor público.
Você tem experiência e sabe que há descontinuidade administrativa quando ocorre o câmbio no poder político, aliás é o que ocorre nas três esferas – federal, estadual e municipal. Com efeito, a cada novo governo se promovem mudanças nos órgãos públicos e substituição de gestores, bem como novas orientações nas políticas setoriais. E a consequência são as interrupções nos projetos e obras em andamento, com consideráveis prejuízos. Assim fica difícil…
As causas estão, para mim, nessas interrupções a cada 2 anos no setor público, notadamente na área da infraestrutura que demanda segurança jurídica e longo prazo. Este estratégico setor deveria ser de responsabilidade do Estado e não do governo. Outro fator que merece atenção seria a descentralização de certas atribuições, empoderando os Municípios, permitindo asim a participação das sociedades locais nos processos decisórios de interesse da região, dando voz ao cidadão, pois é mais apegado à sua cidade do que ao centro do País.
Este é um assunto extremamente importante, mas requerer mais tempo e aprofundamento.
Forte Abraço,
Wilen Manteli
POA, 12-05-2024
Excelente qualidade o texto
Parabéns pelo texto, que nos impõe a necessidade de refletir e agir em defesa do meio ambiente e garantir um planeta melhor para as novas gerações. A água é vital, sem ela todos perecem. “Negociar” com ela é extremamente necessário, pois nada a impede de seguir, mas ela está pronta a ajudar e compartilhar sua força e sabedoria para matar nossa sede, regar nossas plantas, trazer alimentos e ajudar a melhorar a fauna e flora em seu conjunto. Abraço.
Ocupar as várzeas é problema de difícil solução.
Ótimo e didático artigo
Constata-se que nem todo fenômeno da natureza tem haver com o aquecimento global, sendo que as agreções ao meio ambiente deva ser sempre combatida.
Nesse caso, se não houve uma ação preventiva, tão pouco manutenção dos equipamentos entre outros, quem deveria ser responsabilizado?
Excelente artigo que nos indica como devemos aprender, enfrentar e resolver os problemas que criamos quando desafiamos a natureza.
Que baita lição, PRECISA SER DIVULGADA EM TODAS REDES 👏👏👏
Lógico que necessário se faz , levantar as mangas e realizar todas as obras definitivamente necessárias e sabidas para que nenhuma tragédia igual venha a assolar este estado e este povo . O que se irá gastar para remediar , poderia ter sido e DEVERÁ SER GASTO NAS OBRAS OBRIGATÓRIAS E DE REAL SOLUÇÃO . Não há mais tempo nem razão para tudo isto ser postergado
Os Governos Federal, Estadual e Municipal precisam se unir para fazer o que precisa ser feito para a definitiva construção e não “ como agora para remediar mais uma vez”
Abrangente e conciso. Especialmente o ultimo parágrafo que como tal ganha caráter de “moral da história “. Acentua a necessidade de fazer tudo de forma diferente , nova. Soluções que ninguém ainda as tem; que nascem do intercâmbio de experiencias e disciplinas diversas; onde o todo é maior que a soma das partes.
Sem dúvida, o ser humano é o responsável pela catástrofe que ocorreu e ocorre no Rio Grande do Sul, nesta reconstrução que vai ocorrer, os homens públicos e empreendedores terão que tomar mais cuidado. Assim esperamos.